Publicado originalmente Mundo Logística
No Brasil, um dos temas mais complexos e amplamente debatidos dentro das empresas, especialmente com foco na redução de custos, é a tributação. Esse cenário está prestes a mudar com a aprovação da Reforma Tributária, que tem como principal objetivo simplificar o sistema fiscal e fomentar maior eficiência nas cadeias logísticas. Hoje, distorções tributárias entre estados e setores específicos levam muitas empresas a tomarem decisões logísticas não baseadas na eficiência operacional, mas sim na economia fiscal.
Isso significa, por exemplo, que mesmo quando a rota mais curta ou eficiente para entregar um produto está clara, ela pode ser preterida por caminhos mais longos ou complexos, simplesmente por conta de incentivos fiscais em determinados estados, conhecido como “turismo fiscal”. Nesse contexto, empresas estruturam áreas fiscais especializadas, que vão além da conformidade legal, atuando como centros de inteligência para identificar brechas e oportunidades fiscais, influenciando diretamente na configuração da malha logística.
Essas áreas, em muitos casos, têm poder de decisão equivalente às áreas operacionais, dada a representatividade do fator fiscal nas escolhas de rotas, posicionamento de centros de distribuição e modelos de abastecimento. Um estudo de caso recente no varejo indicou redução de 15% na carga tributária no primeiro ano após implementação de um software de gestão fiscal em conjunto com revisão de processos com foco em automatizar a apuração e geração de relatórios, além de garantir monitoramento contínuo da legislação para adaptações na operação.
“Desde o momento
da compra até a
entrega final, o
comportamento
do cliente
deve orientar
decisões de S&OP,
armazenamento,
transporte e last mile“
OS IMPACTOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA NA MALHA LOGÍSTICA
Com a reforma, no entanto, esse cenário tende a se transformar. A principal mudança é a substituição de cinco tributos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI) por dois impostos sobre valor agregado: o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Ambos seguem o modelo do “crédito financeiro”, que elimina o efeito cascata e permite apropriação de crédito independentemente do uso do insumo (desde que relacionado à atividade econômica da empresa).
Com isso, a tributação passará a ocorrer no destino da operação e não mais na origem — tornando ineficiente a manutenção de centros de distribuição em determinados estados, que anteriormente foram justificados apenas pela presença de incentivos fiscais.
Além disso, a padronização das alíquotas e a eliminação da guerra fiscal interestadual reduzem a relevância da variável tributária como fator de decisão estratégica. Rotas ineficientes do ponto de vista operacional tendem a perder sentido econômico.
E, com isso, abre-se espaço para um novo direcionador logístico: o cliente. Hoje, a variável fiscal figura entre os principais fatores de decisão no desenho da malha logística. Com essa perda de protagonismo do fator tributário, surge a necessidade de encontrar um novo direcionador estratégico. É nesse ponto que o foco no cliente surge como fator estratégico.
O conceito de cadeia orientada ao cliente, embora intuitivo, é desafiador de implementar. Em vez de decisões centradas em metas internas — como redução de custos logísticos, otimização de insumos e aumento de produtividade —, essa abordagem parte da compreensão das necessidades e preferências dos consumidores. Desde o momento da compra até a entrega final, o comportamento do cliente deve orientar decisões de S&OP, armazenamento, transporte e last mile.
A VIRADA PARA A LOGÍSTICA ORIENTADA AO CLIENTE
Tradicionalmente, aplicar esse conceito em empresas com ampla base de clientes e operações complexas parecia impraticável, dada a enorme quantidade de dados envolvidos. Contudo, a evolução tecnológica já viabiliza essa virada.
Soluções baseadas em inteligência artificial e sistemas integrados, como plataformas de previsão de demanda, TMS (Transportation Management System) e WMS (Warehouse Management System), conectadas a ERPs fiscais, permitem coletar e processar dados de consumo, devoluções, preferências de entrega, entre outros. Isso viabiliza decisões mais inteligentes, voltadas à personalização do atendimento e ao aumento da eficiência operacional. Exemplos reais mostram o potencial dessa transformação.
Por exemplo, o Magazine Luiza, ao revisar a própria malha logística e realocar centros de distribuição com foco na demanda real — e não mais em incentivos fiscais —, conseguiu reduzir em 25% os tempos de entrega médios nas regiões Norte e Nordeste. Além disso, a revisão da malha possibilitou uma economia logística de R$ 15 milhões por ano, conforme divulgado no relatório de sustentabilidade de 2022.
Em outro caso, demonstrado por meio de um estudo da KPMG, um operador logístico do setor de alimentos ajustou sua estrutura de armazenagem com base em dados de sell-out e redesenhou a própria malha, reduzindo custos com fretes em 18% e melhorando o nível de serviço em 12 pontos percentuais.
Naturalmente, a transição para uma cadeia orientada à demanda não ocorrerá da noite para o dia. Revisar toda a estrutura logística, integrar sistemas, capacitar equipes e superar resistências internas são desafios reais. Além disso, a insegurança jurídica sobre aspectos da reforma e a complexidade da tributação no Brasil ainda devem gerar ruído no curto e médio prazo.
É preciso maturidade estratégica e disciplina operacional para atravessar esse processo. Vale lembrar que a implementação da reforma será gradual, com um período de transição que se estenderá de 2026 a 2032.
Nesse intervalo, coexistirão o sistema atual e o novo modelo, com ajustes progressivos nas alíquotas. Isso exigirá das empresas um planejamento cuidadoso, já que a definição da malha ideal deve considerar não apenas a lógica futura, mas também os efeitos econômicos no curto prazo. Por exemplo, centros logísticos instalados em regiões beneficiadas por incentivos fiscais podem ainda ser vantajosos nos primeiros anos da transição.
“A transição para
uma cadeia
orientada à
demanda exigirá
revisar toda
a estrutura
logística, integrar
sistemas, capacitar
equipes e superar
resistências
internas.”
OPORTUNIDADES E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DA NOVA MALHA LOGÍSTICA
A partir do momento em que a lógica fiscal deixa de ser o principal critério na tomada de decisão logística, abre-se espaço para um novo modelo de malha, estruturado a partir das necessidades reais do cliente. Com isso, a proximidade aos centros de consumo, a agilidade no atendimento e a personalização dos serviços tornam-se pilares para a definição de localizações estratégicas, rotas de transporte e políticas de abastecimento. Esse novo cenário traz oportunidades claras. A eliminação progressiva da guerra fiscal permitirá que empresas revejam estruturas logísticas que antes faziam sentido apenas por razões tributárias.
Centros de distribuição localizados em estados com incentivos fiscais, mas afastados dos grandes mercados consumidores, poderão ser realocados para regiões mais estratégicas, reduzindo prazos de entrega, otimizando custos e aumentando o nível de serviço. No varejo, por exemplo, será possível substituir estoques centralizados por hubs regionais, elevando a disponibilidade de produtos e a capacidade de resposta ao consumidor final.
Nesse sentido, um estudo da McKinsey sugere que a otimização da rede, incluindo hubs regionais, pode reduzir custos logísticos em até 20%. Em se tratando de satisfação do cliente, a Deloitte aponta em pesquisa que empresas que implementaram hubs regionais conseguiram reduzir o tempo de entrega em até 30%, impactando diretamente a satisfação e fidelização dos clientes.
Contudo, a transição para uma cadeia de suprimentos mais competitiva e centrada no cliente traz desafios. Entre eles, a resistência cultural de empresas historicamente estruturadas sobre incentivos fiscais, além de barreiras operacionais como contratos longos de locação de CDs, limitação de dados em tempo real sobre demanda e estoques, fragmentação de informações entre áreas e a existência de sistemas legados e pouco integrados. Esses fatores dificultam a construção de uma visão unificada e orientada a decisões estratégicas.
“No B2B, fidelizar
o cliente pode
se traduzir
diretamente
em ganho de
participação de
mercado”
DA OBRIGAÇÃO FISCAL À ESTRATÉGIA COMPETITIVA
Apesar desses desafios, os benefícios são significativos. Uma cadeia orientada ao cliente não necessariamente representa aumento de custos. Pelo contrário, ela tende a reduzir perdas com devoluções, diminuindo os custos de cadeia reversa, aumentar a fidelização e, consequentemente, o volume de recompra. No ambiente B2B, a fidelização do cliente pode se traduzir diretamente em ganho de participação de mercado.
Além disso, a disponibilidade de dados mais qualificados permite maior precisão no planejamento de estoques e rotas, promovendo uma operação mais enxuta, responsiva e conectada às reais necessidades do consumidor.
Neste contexto de transformação, a Reforma Tributária surge como um catalisador para a reinvenção das cadeias de suprimentos no Brasil. Mais do que uma adequação à nova legislação, trata-se de uma oportunidade para realinhar a lógica das operações logísticas com a entrega de valor ao cliente, estabelecendo uma vantagem competitiva sustentável. Para tanto, será necessário um esforço coordenado entre áreas de negócio, tecnologia e liderança.
A transição exige revisão de processos, modernização de sistemas, integração de dados e, sobretudo, uma mudança de mentalidade: sair de um modelo reativo e centrado no fisco, para um modelo proativo, inteligente e orientado ao cliente. Em um cenário no qual todos terão que se adaptar, aqueles que transformarem essa obrigação em estratégia sairão na frente.
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